28 setembro 2008

O outro lado da Bolívia

Olá pessoal,

Esta é uma mensagem de um brasileiro que vive na Bolívia, que vê os acontecimentos de outro ângulo, não do ângulo capitalista e opressor que dominam o mundo globalizado.
Leiam por favor, o texto é grande, mas vale a pena.

Abraços,

Queridos amigos e amigas,
Mas uma vez me sinto no dever manifestar o meu pensamento sobre os últimos acontecimentos passados aqui na Bolívia. Para começar quero lembrar a todos que estou aqui como voluntario permanente do Movimento internacional ATD Quarto Mundo, que atua em muitos paises lutando junto com as pessoas quevivem na extrema pobreza para que tenham reconhecidas sua dignidade humana. Não estou envolvido em políticas partidárias, com governo ou oposição. Apenas faço uma leitura a partir de informações que certamente não chegam até aí. Para começar asseguro a todos que estamos muito bem e que não existe qualquer previsão de que os distúrbios possam chegar aqui a La Paz. La Paz fica no ocidente, o altiplano boliviano que tem uma população conformada majoritariamente por pessoas de origem Aymara e Quechua. Desde a chegada dos espanhóis, os povos e as terras do altiplano foram exploradas a exaustão, sustentando toda a Bolívia e, durante pelo menos um século, todo o império espanhol. Na era republicana os indígenas continuaram sendo explorados e discriminados pelas classes dominantes, descendentes de europeus. Até a eleição de Evo Morales, uma pessoa com sobrenome indígena não podia entrar em uma universidade ou aceder a um posto no exército (exemplos básicos). Em Sucre (capital constitucional e um dos focos de distúrbios) alguns restaurantes proibiam explicitamente a entrada de indígenas (continuam fazendo isso na prática).O Oriente, cuja principal cidade é Santa Cruz começou a desenvolver-se com mais força a partir da década de 70 num modelo de latifúndios agrícolas baseado na exploração e dominação dos povos indígenas dessa região (as maiores populações são de guaranís e chiquitanos). Até hoje são recorrentes os casos de trabalho escravos nesses latifúndios. As elites do país sempre governaram com mão forte, delapidando todas as riquezas naturais do país, estimulando o tráfico de cocaína (ao mesmo tempo em que combatiam oconsumo da folha de Coca), com uma estrutura estatal corrupta que não atende as mínimas necessidades da população. Em alguns momentos históricos, algumas categorias profissionais, principalmente os mineiros responsáveis pela principal riqueza do país, chegaram a obter uma certa força de pressão e foram violentamente reprimidos no estilo das piores ditaduras que passaram pela América Latina. A eleição de Evo Morales que só foi possível depois de alguns anos de fortes mobilizações sociais foi um marco importante num processo de mudança no país. Pela primeira vez, num país onde quase 70% da população se identifica como pertencendo a algum povo indígena, um "índio" chegava ao cargo. E por primeira vez os grupos dominantes se viam fora do poder central ao mesmo tempo em que perdiam a maioria no congresso. Mas continuaram com um domínio total dos grandes meios de comunicação.. E mantiveram também o poder em seus departamentos (estados), basicamente Tarija, Santa Cruz, Beni e Pando aonde estão as novas riquezas bolivianas, o gás e o petróleo. Todos os atuais prefeitos (governadores) desses departamentos são afilhados políticos do General Hugo Banzer duas vezes presidente do país (uma vez através de golpe de Estado e outra eleito "democraticamente" pelos meios de comunicação), uma das figuras mias sinistras da história política do continente, sobre quem recai a culpa de inúmeros crimes de tortura, assassinato e corrupção. Também participaram do governo de Gonzalo Sanchez de Lozada que fugiu em 2003 para os Estados Unidos para escapar de um processo de genocídio pela morte de 64 pessoas. Evo herdou uma estrutura estatal corrupta, falida e quase sem presença nos departamentos mais distantes, principalmente os amazônicos, Beni e Pando, aonde um pequeno número de famílias são a lei. Detém o poder político e econômico, seus filhos e protegidos fazem o que querem sem precisar se preocupar com qualquer punição. Há algumas semanas eu fui a Cobija capital de Pando, na fronteira com o Acre. Aí só é possível chegar de avião num aeroporto sem nenhuma estrutura ou em 3 dias de ônibus, saindo de La Paz, na época de seca. No próprio ambiente da cidade e nas conversas com algumas pessoas de confiança, se sente o domínio total do prefeito Leopoldo Fernandes. Ali na região da tríplice fronteira Brasil-Peru-Bolivia é de conhecimento comum o envolvimento do "cacique de Pando" como gosta de ser chamado, nos latifúndios pecuários,madeireiras e tráfico de drogas, sendo inclusive suspeito de algumas mortes, cujas investigações nunca são concluídas. Enquanto estavam no poder central essas lideranças nunca falaram em "autonomia", as propostas nesses sentidos vinham dos movimentos sociais pedindo autonomia para os povos indígenas. Agora que voltaram aos seus redutos levantam a bandeira da autonomia departamental como soluçãode todos os problemas. É certo que a Bolívia precisa de um processo de descentralização, mas essas propostas de autonomia tem como único objetivo manter o domínio e privilégios sobre as terras e recursos naturais dos seus departamentos. Os chamados estatutos autonômicos, que são verdadeiras constituições paralelas, desconhecem leis federais e o governo central. Uma das grandes questões é que a nova constituição traz uma reforma agrária radical e necessária impondo um limite a propriedade que afetaria diretamente suas riquezas. O outro ponto é o controle sobre os lucros do Petróleo. Pelos estatutos, esses dois pontos ficariam sob controle do governo departamental. Essa última onda de violência têm como desculpa o corte de 30% feito pelo governo sobre o Imposto Direto sobre Hidrocarburos (IDH) que é repassado as prefeituras, para pagar uma renda mensal mínima aos idosos (que até então não recebiam qualquertipo de assistência). Essa desculpa é bem esfarrapada, já que com as nacionalizações feitas pelo governo, essas arrecadações aumentaram absurdamente, de modo que as prefeitura não conseguiam gastar nem 60 % desses recursos e não existe qualquer projeto ou proposta para a utilização desse dinheiro. O verdadeiro objetivo é atacar e debilitar o governo levando a dois caminhos: ou derrubar o presidente e voltar ao poder central, ou acirrar os conflitos levando a uma divisão do país. Não são poucos os que gritam "independência" pelas ruas de Santa Cruz.O governo e agências estadunidenses sempre estiveram presentes e influindo em todas as etapas da política boliviana. Enquanto com uma mão oferece apoio humanitário, com a outra gera dependência, violência e miséria, para seguir com os comércios de armas, drogas, medicamentos e outras práticas. Isso até a mais ingênua das pessoas sabe que acontece em todas as partes do mundo. A expulsão do embaixador Phlip Goldberg (que tem um currículo considerável como um dos marcável atuação nas guerras de divisão da ex-Iugoslávia), não foi um ato impensado ou irresponsável como se anuncia, ele foi alertado várias vezes sobre suas interferência na política do país e suas relações com os grupos de oposição. Como base de sustentação para essa política de enfrentamentos e dominação, existe um aparato ideológico fortíssimo capaz de fazer inveja aos propagadores do nazismo na Alemanha. Aliás, certamente inspirada por eles. Os habitantes do ocidente (La Paz) são chamados de Kollas e do oriente de Cambas. Depois da segunda guerra mundial, algumas importantes figuras do governo de Hitler fugiram para a América do Sul. Algumas delas vieram parar em Santa Cruz para onde também vieram, na década de 70, croatas fugindo do comunismo. Uma dessas lideranças nazistas foi Klaus Barbie, "o carniceiro de Lyon" que viveu 40 anos na Bolívia antes de ser capturado. Essa história acaba de ser lançada em filme. Aí se estabeleceram com grandespropriedades de terra e ajudaram na disseminação de uma ideologia racista. Durante muitos anos esse ódio ao indígena e ao Kolla seguiu latente, explodindo em algumas ocasiões e se condensando em alguns grupos específicos como a União Juvenil Crucenhista e seus similares em outros departamentos. Milícia facista nosmoldes da Juventude Hitleriana (da qual Barbie fez parte) que funciona como tropa de choque das oligarquias. Não têm nenhuma vergonha em exibir a suástica pelas ruas, em ameaçar e atacar pessoas de acordo com a cor da pele ou lugar de origem. As táticas utilizadas para criar esse clima de ódio entre a população são as mesmas de sempre. O medo, a ignorância, o controle da informação, a crise econômica. Os culpados de tudo são os Kollas, assim como na Alemanha eram os judeus, ou como aqui em La Paz são os peruanos. O problema sempre vem de fora. Nesse caso, o que atrai é a idéia de uma Raça Camba (explicitamente), branca, europeizada, moderna, rica e desenvolvida, contra uma massa subhumana, atrasada, morena,indígena, etc.Quando estive em Cobija estavam bloqueando a ponte que liga à cidade de Brasiléia no Brasil, de onde vem milhares de brasileiros para fazer compras nos fins de semana, desde Rio Branco e outros lugares ainda mais longe. Na minha cabeça, não fazia sentido atrapalhar a principal atividade econômica da cidade e resolvi averiguar. A coisa é que o comércio da cidade é feito por migrantes de Cochabamba, La Paz, Oruro, Potosí... ou seja de Kollas. Então o objetivo era atingir diretamente a essas pessoas, e não o governo. Conversando com uma senhora, ela me falou sobre os "paros civicos" (greves) quando elas são obrigadas a fechar as lojas como se estivessem apoiando a manifestação. Quando perguntei como faziam isso ela me disse: "Eles vem de moto, quebram os vidros levam a mercadoria, agridem, não tem jeito".Essa última crise é a mais violenta desde que estou aqui. A situação é grave. Já a algum tempo as pessoas vem sendo agredidas somente por que vem de La Paz, Oruro ou Potosí, porque são Ayamaras ou Quechuas, ou porque supostamente simpatizam com o governo. Nessa terça-feira, a violência explodiu em Santa Cruz e Tarija, com a invasão violenta e saques de instituições publicas, ONGs, federações de camponeses e indígenas, ataques a casas e comércios de Kollas, Instituições de apoio cubanas e venezuelanas. Nem mesmo os canais de televisão puderam maquiar as imagens que mostravam roubos, vandalismo, linchamento de homens e mulheres. Agora falam em confrontos entre manifestantes contra e a favor do governo. Não se trata disso, até porque os movimentos que apóiam o governo não tiveram nem tempo de se mobilizar. O que aconteceu foram ataques diretos a camponeses, trabalhadores e qualquer outra pessoas identificada por eles como sendo a favor do governo. Quando foi possível essas pessoas se juntaram para se defender. Como no caso do mercado camponês, quando chegaram jovens unionistas para invadir e saquear. Os comerciantes se juntaram não para defender o governo de Evo Morales, mas seus bens e suas vidas. Apesar de terem conseguido impedir a invasão muitos saíram feridos. A pior situação é em Cobija, aonde segundo os jornais, morreram oito pessoas, mas fontes muito mais confiáveis revelam que o número passa de 20! Além do que os jornais falam que os camponeses estavam armados e teriam atacados a funcionários da prefeitura. Nova mentira. Os camponeses não estavam e não estão armados, seus líderes estão sendo perseguidos, não estão podendo resgatar os corpos dos companheiros vitimados, seis foram encontrados boiando no rio, entre eles o de uma mulher grávida. Um grupo de quase 15 pessoas está sendo mantido como refém. Isso foi o que eu pude saber até agora.Para quem se preocupa com a situação da Bolívia eu dou um conselho. SEMPRE desconfiem das notícias, porque em quase 100% dos casos trazem mentiras e interpretações tendenciosas. Os caminhos para uma solução pacífica parecem bem difíceis. Os movimentos sociais agora também estão mordidos e prometem reagir. Cobram do governo uma posição mais dura, como a decretação de um estado de sítio e uma militarização das regiões, o que o governo se nega a fazer. Os grupos dominantes não vão abrir mão dos seus privilégios. De uma maneira eu vejo como uma elite derrotada e decadente em seus últimos esforços desesperados de manter seu domínio, mas que ainda representa um perigo muito grande para o país e para a região. É uma situação muito complicada.
Apesar disso, eu tenho fé em Deus e no povo que vai saber encontrar seu caminho na construção de um mundo melhor. Os pobres sofrem com a violência a cada dia, independentemente da situação do país. Estão cansados disso. Querem paz. Mas uma paz com justiça, respeito e dignidade. Não vão se submeter outra vez ao jugo das elites. Nesse caminho eu vejo que não há volta. O governo de Evo tem muitos problemas, mas tem pelo menos esse logro, de fazer com que as pessoas saiam da humilhação, da vergonha e comecem a lutar por seus direitos. Com o sem o Evo vejo que esse processo não tem volta atrás. A grande maioria não me parece querer revanche ou vingança, só o direito de viver e criar seus filhos com dignidade.Obrigado aos que tiveram paciência de ler até aqui.
Quero dizer que tudo o que escrevi são opiniões pessoais e de minha inteira responsabilidade. Não representam nenhum posicionamento do movimento quarto mundo ou de qualquer outro grupo. Quem achar que vale a pena pode transmitir para quem quiser. Também quem quiser dialogar estou sempre disposto.Novamente volto a recorrer a minha credibilidade pessoal. Quem me conhece sabe das minhas intenções.Um grande abraço a todos!
Eduardo Simas

1 Comentários:

disse em 1/10/08 15:37, Anonymous Anônimo

Olá, Projeto!
Parábens pela publicação do texto. É ótimo saber de fontes revelando o outro lado do conflito, se opondo ao poderoso "4º poder", a grande mídia mentirosa e manipuladora.
Talita

 

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